Abertura já
GUSTAVO FRANCO
No início dos anos 1980, Brasil e Coreia tinham níveis semelhantes de renda per capita e de produtividade do trabalho.
Na época, havia muitas dúvidas sobre os modelos de desenvolvimento
econômico mais apropriados ao que vinha pela frente, e entre os países
hoje conhecidos como emergentes destacavam-se duas “escolas”: de um lado
estavam os chamados “tigres asiáticos” (Coreia, Taiwan, Hong Kong e
Cingapura), que buscavam maior integração na economia global através da
“promoção de exportações” (e importações), e de outro, os
latino-americanos, com seus modelos de “substituição de importações”,
ênfase no mercado interno e autossuficiência.
Eu dava meus primeiros passos como pesquisador, e, em conferências
internacionais, os encontros com os colegas asiáticos tinham lugar em um
clima de certa rivalidade, muitas vezes sadia e bem-humorada, mas com
alguns estranhamentos patrióticos inevitáveis. Todos eram acadêmicos em
busca de verdade, mas com certa torcida.
Nós defendíamos nossas cores argumentando que o modelo não era
importante se o país fosse competitivo e que, como o mercado interno
dava escala ao produtor nacional, o protecionismo devia ser utilizado de
forma pragmática. Ademais, era justo que o Brasil procurasse reduzir
sua vulnerabilidade externa em razão dos estragos causados pelos preços
do petróleo.
Como éramos ingênuos…
Eles diziam que não estávamos entendendo nada sobre globalização e
que era bom nos adaptarmos a isso em vez de nos esconder, e que a
proteção redundava em deprimir a competitividade, pois as “economias da
preguiça” dominavam as de escala. Diziam também que o mercado interno
não era nada comparado com o mercado mundial, que estávamos olhando o
problema da vulnerabilidade externa de cabeça para baixo, e que a
maneira mais barata de arrumar petróleo era produzir alguma coisa em que
fôssemos competitivos para trocar com os árabes.
E ficamos assim, cada qual defendendo o seu quadrado.
Trinta e cinco anos depois, está mais do que claro que nós levamos
uma surra, que eles tinham razão e que nós embarcamos em uma canoa
furada.
A renda per capita da Coreia hoje está perto de 75% da renda per
capita dos EUA, ou seja, mais que triplicou, ao passo que o Brasil, que
estava perto de 25% da renda americana nos anos 1980, desceu para 18% na
avaliação mais recente.
Nos 50 anos anteriores a 1982, o Brasil estava entre os melhores
desempenhos do mundo em matéria de crescimento. Mas a mágica que
funcionou até aí se perdeu, ou as circunstâncias mudaram, ou ambas.
Talvez o segredo do sucesso esteja em adaptar-se a circunstâncias
incomuns, como fizemos nos anos 1930, mas fracassamos redondamente
depois de 1982. Permanecemos insistindo nas mesmas receitas e já fazem
35 anos de desempenho medíocre.
Será que não está na hora de repensar radicalmente a nossa estratégia
de inserção externa? E de rever nossas crenças sobre o conteúdo
nacional, “adensamento das cadeias produtivas” e acordos internacionais?
Eles estavam certos em outras coisas, como a suprema importância da
exposição à competição internacional para conduzir as empresas à
competitividade. Isso se dava, segundo diziam, por que não existia mais
“indústrias nascentes”, apenas multinacionais mudando de lugar, e
fazendo escolhas tecnológicas determinadas pelo ambiente.
O
demônio do protecionismo, todavia, parece bem mais resistente, talvez
por que os interesses que vivem sob a sua sombra possam se enrolar na
bandeira nacional e exibir uma falsa respeitabilidade beirando a
canalhice.
Se é para abastecer um mercado interno protegido e com obrigações de
conteúdo local, elas adotam o “kit nacionalista”, mas se é para
participar da globalização, a chave é outra e a filial se organiza para
fazer parte de uma cadeia internacional de valor.
Uma estatística para filiais americanas funcionando no Brasil em 1977
indicava que apenas 8,7% das vendas eram para o exterior, enquanto que
na Ásia a razão exportações sobre vendas totais era de 81,2%. As
proporções foram para 25% e 52% em 2010, e a média mundial é 45%.
Eram estilos diferentes de inserção externa e que traziam vastas
implicações para o tema da vulnerabilidade externa. A descoberta sobre
esse assunto nada tinha de intuitiva para nós: em assuntos de balanço de
pagamentos, o rabo balança o cachorro.
Explica-se. Um país com importações iguais a exportações na faixa de
35% do PIB, como a Coreia, podia gerar um superávit comercial de 7% do
PIB com uma desvalorização cambial de meros 10%. Mas, para um país como o
Brasil, com importações iguais a exportações na faixa de 7% do PIB, o
mesmo superávit precisaria de uma desvalorização cinco vezes maior, de
50%, uma encrenca.
Portanto, e surpreendentemente, quanto mais fechado, mais “vulnerável”!
Descobrimos essa triste matemática em 1982, quando começou uma “década perdida” que está durando 35 anos.
Uma conclusão tentativa é que, como coletividade, o Brasil é de uma
teimosia exasperante no terreno das relações internacionais, mais até
que nos assuntos ligados à inflação, onde insistimos com “teorias”
heterodoxas até esgotar a paciência do brasileiro. Ressalvada a
escorregada recente, aprendemos a lição sobre inflação.
O demônio do protecionismo, todavia, parece bem mais resistente,
talvez por que os interesses que vivem sob a sua sombra possam se
enrolar na bandeira nacional e exibir uma falsa respeitabilidade
beirando a canalhice. Na verdade, a proteção tarifária, as reservas de
mercado, desonerações e facilidades para “campeões” parecem se amontoar
em tempos recentes, no contexto do “capitalismo de quadrilhas” que aqui
se quis implantar, e que a Operação Lava Jato se empenha em combater.
Num livro de 1988, o professor Robert Klitgaard, de Harvard, definiu o grande problema nacional em uma simples equação:
Corrupção = Monopólio + Arbitrariedade – Transparência.
Ou seja, quanto mais distantes do mercado estiverem as relações entre
o público e o privado, quanto mais discricionárias as decisões, e
quanto menor a transparência, maior será a corrupção.
Tendo em mente a equação acima, apenas uma observação sobre “política industrial ativa”, uma das prioridades do petismo.
Dois economistas (Alberto Ades e Rafael Di Tella) procuraram
especificamente uma relação entre corrupção e o que eles denominaram
“campeões nacionais”.
Usando dados para 1989-92, de alguns milhares de depoimentos de
executivos atuando em dezenas de países, concluem que valores entre 16% e
44% dos investimentos viabilizados por “políticas industriais ativas”
se transformam em propina: 30%, em média!
Pois é.
Seria maravilhoso se, junto aos desdobramentos da Operação Lava Jato,
pudéssemos rever a vasta constelação de políticas públicas
discricionárias e seletivas que tanto favorecem mercados cativos,
desvios éticos e prejuízos ao nosso crescimento.
Gustavo Henrique de Barroso Franco é economista, foi presidente do Banco Central do Brasil.